Heróis do mar de olhos fascinados
pelas bandeiras alinhadas dançando ao vento
peixinhos dourados, tubarões, polvos, caranguejos,
lontras brincalhonas com nome de gente,
nobre povo finalmente libertado
por bispos e guerrilheiros escondidos na selva
e milhões de portugueses abraçando uma causa
dos outros feita sua,
nação valente e imortal
festejando futuras vitórias no oriente
dentro das quatro linhas brancas
riscando um chão de relva esperança
levantando hoje de novo o esplendor de Portugal,
uma dúzia de jovens feitos ratos num labirinto
olhados através das cameras por um país inteiro
que compra casas, carros novos, o mundo todo
a crédito generoso e amplamente publicitado
e que engana a crise descendo país abaixo
festejando a ressurreição de Cristo nas areias do Algarve,
pastorinhos trepando os altares,
um terceiro segredo feito por encomenda,
um nobel de mau humor na prateleira,
festas luminosas de gente bela e bonita
oferecendo caridosamente Channel e Valentino,
astrólogas de serviço de urgências
aconselhando dores no peito e na carteira
e tudo ia bem
neste país onde a terra acaba e o mar também
mas de repente,
notícia de última hora
o Benfica contratou um novo ponta de lança
Cherne, ex-Mao Tse Tung Futebol Clube,
e o Cherne enterrou a bola no fundo da rede.
É golo! É golo! É golo!
Gooooooolo!
O Cherne atravessa o relvado em corrida veloz,
sai do estádio, entra em São Bento
e anuncia solenemente com um ar grave e sério
o país está de tanga.
Apertam-se os cintos, esvaziam-se os pratos fartos,
faz-se fila por um lugar no desemprego
apuram-se as responsabilidades entre as brumas do passado
na voz dos egrégios avós
a culpa é dos salazaristas, dos gonçalvistas,
dos soaristas, dos cavaquistas, dos guterristas
coloque a cruz no quadrado certo.
Errado! A culpa é do português
que trabalha em camera lenta
pede licença a uma mão para mexer a outra.
É preciso trabalhar mais por menos salário
não interessa quanto tempo de caminho
demoras de casa ao trabalho e vice-versa
ou se te resta tempo para os teus filhos,
para amar, para varrer e passar a ferro,
para recarregar as baterias do teu corpo,
só a produtividade é importante.
Não interessa se o que tu ganhas
paga o esforço de ser produtivo
e a prestação da casa, do carro, dos filhos
não se esquece de ti
sempre ali à tua espera na esquina de cada mês.
E quando as coisas pareciam estar mal
tornaram-se ainda piores
tranca os teus filhos a sete chaves
há um novo inimigo público número um.
Segunda feira, abertura do noticiário,
a Judiciária prendeu o alegado pedófilo;
terça feira, abertura do noticiário,
o alegado pedófilo é interrogado;
quarta feira, abertura do noticiário,
o alegado pedófilo é visitado pela alegada esposa;
quita feira, abertura do noticiário,
as claques apoiam o alegado pedófilo;
sexta feira, vocês já sabem o quê,
o alegado pedófilo alegadamente deu um peido;
depois um depoimento em voz e cara distorcidas:
Foi na loja do Mestre André
que eu lhe chupei a pilinha,
Ai olé! Ai olé! Foi na loja do Mestre André.
Sábado, domingo, segunda, terça
e por aí adiante percorrendo o calendário
até à exaustão fazendo-nos esquecer
que nunca recebemos um
Jaguar como presente.
Depois aquele Verão de Dante
em que o país naufragou num mar de chamas
Titanic ecológico que se afundou
no embate com um
hotberg ao largo do eixo atlântico
em seu socorro vêm já a caminho
dois submarinos novinhos em chapa
era mesmo disto que estavamos a precisar.
E o português foi-se deitar
com um ai de angústia doendo-lhe no peito
embrulhado num lençol de fatalismo
"só mesmo neste país"
e com a nostalgia de um poder musculado
"nem no tempo do Salazar".
De manhã acordou e olhou o sol que desponta
não há mal que sempre dure
e a esperaça é sempre a última a morrer
ainda havemos de ser reconhecidos
entre os grandes do mundo, o Quinto Império,
e tudo isto nos há-de levar à vitória.
Há armas! Há armas! Fomos nós que as vendemos
temos toda a papelada para o comprovar
mandamos os geninhos para os prender
esperando assim que nos restem algumas migalhas
perdidas entre a lama, o pó e o sangue
das botas que avidamente lambemos,
as botas dos nossos amigos sabem sempre melhor.
É válida a causa
de pela força ditar uma democracia em terra alheia
enquanto por cá pacificamente
se vai limpando o sonho da nossa constituição
a isto se chama evolução
e aquele jovem dos idos de setentas
que na praça festejava trinta anos de liberdade
debaixo da sombra colorida do fogo de artifício
sentiu um gosto amargo na boca
e os olhos húmidos de desilusão
não foi para isto que fizemos a revolução.
"Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado".
Maio de 2004