Caga Sentenças

Todo o Português caga a sua sentença. Neste espaço venho deixar a minha poia.

quarta-feira, junho 29, 2005

eu não vou escrever um texto


douglas gordon, Tattoo (for reflection), 1997, C-print, 71,5 x 71,5 cm

começa assim:

chego ali e faço notar que sou culpado. pelo ar, pela maneira sobranceira, mas esquiva com que enfrento os outros. se tenho de começar uma conversa, melhor que seja com algo que valha a pena...bolas!...não me lembro de nada...bem, chego ali e digo mesmo que sou culpado, podem não notar. ainda acham que me estou a fazer ao pingarelho... que me estou a armar... o melhor é chegar ali e dizer tudo.
assim mesmo... tudo o que tenho a dizer dizê-lo. de uma vez, de um jorro. vomitar verdades até ao vazio. chego ali e faço notar que algumas coisas me desagradam, mas que por outro lado, há muitas que me alegram.

quando digo que prefiro um pequeno som a uma grande música, já me vieram com as mais disparatadas teorias. a mais frequente e ao mesmo tempo mais idiota, é a de que isto é um sinal de humildade. das primeiras vezes ainda me ri, porque sou gajo de riso fácil. mas depressa percebi a gravidade da coisa. as palavras estavam a saír da minha boca e no factor espaço tempo elas entravam em mutação. não é por acaso que o bill dizia que a linguagem era um vírus. ante o problema, achei-me sem respostas. fui para casa. como já estava em casa, meti-me dentro da casa que tenho em casa.
chego ali e meto conversa, uma coisa qualquer inóqua, mas que ao mesmo tempo dê tema de conversa para 10, 15 minutos. que não seja polémica, que todos conheçam, politicamente correcta e numa frase sem erros. ou talvez dê um erro de propósito, para desviar o assunto. ou digo "prontos" várias vezes entre as frases. ou "portantos". prefiro "portantos". chego ali, e portantos, vou conversar. como se houvesse uma conversa. chego ali e começam a saír-me da boca formas estranhas, nuvens atordoadas de coisas, montes de coisas perdidas, primeiro letras depois palavras depois frases depois livros, listas, formulários, tudo em jorro de fim de tarde. eu ali, e as eleições a dois meses.
quando deixo de ter frio, visto um casaco qualquer e de qualquer um e dirijo-me a uma imobiliária para "comparar preços", "estudar o mercado". acabo invariavelmente por colher um comboio. a ver se o rio das outras praias também "se some nas areias em plena praia, ali a 10 metros do mar em maré cheia e nunca consegue desaguar de maneira que se possa dizer: porra, finalmente o rio desaguou!"
sentença: guilty as charged

acaba assim

sal. helsinki 27-07-2005 23:41

3 Comments:

  • At 2:24 da manhã, Anonymous Anónimo said…

    Não, se me permite dizer, não escreveu um texto. Descreveu Resignação. Assim o entendi eu.
    O seu Post, levou-me a meditar mais uma vez sobre algumas coisas que por indizível causa me povoam o pensamento: o que faz (inter)agir as pessoas? O que as move? O que as inibe? E principalmente o que as limita?
    Acredito e muito profundamente o sinto que o processo de aculturação social de um indivíduo , lá no fundo, de certo modo o perverte, o faz desviar-se de si próprio, da sua genuína maneira de ser. Porque essa pessoa, esse indivíduo na sua genuinidade profundamente natural, e porque diferente, tem ideias, fantasmas e sentimentos que nem sempre, ou a maioria das vezes, estarão socialmente correctos, logo aceitáveis, para os padrões sociais vigentes. E nesta perversão/aculturação social, os indivíduos, ao invés de se questionarem interiormente porque é que seguem em fila não sabendo muito bem para onde, vivem sustentados no “socialmente correcto”, rendem-se ao comodismo e ficam sempre á espera que um dia os rios interiores que os habitam finalmente desagúem numa praia qualquer sonhada por outros mas nunca sua. Tornam-se uns resignados passivos. E sentem-se culpados. E muitas vezes essa culpa não existe por nada fazerem que se lhes aponte mas talvez por fazerem nada que possa ser apontado. E desconcertadamente, vão vestindo um casaco que não é o seu e apanhando comboios numa viagem que não é bem a sua.
    Nunca consegui entender o ditado “ se não os podes vencer junta-te a eles”. Penso que é preferível ser um ribeiro como o de São Pedro ( mesmo poluído) , que não sendo rio, de vez em quando recebe lampejos de agua fresca, as ondas do mar, nunca desaguando, mas sentindo o bafejo de água limpa na sua praia real.
    È o que acontece quando entre a multidão, temos a sorte ou o privilegio de encontrar pessoas que dessa mesma se destacam. Hoje, assim aconteceu com o seu Post, Poisbem. Obrigada.

     
  • At 9:50 da tarde, Blogger Cão com Pulgas said…

    Obrigado a ambos, pela lucidez, pelo português, por tudo. Gostei muito, prontos.

     
  • At 4:19 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Poisbem, caga aqui mais vezes...
    Gostei!!!

     

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