O Zezinho
5 777 676 eleitores portugueses não votaram no primeiro referendo nacional da nossa história. Preferiram um dia de praia, de campeonato mundial de futebol ou uma ida ao centro comercial da área de residência. Nesse domingo de 1998 saía vitoriosa a campanha "pelo direito à vida" a qual ganhou por uma margem que apenas mostrou que a questão da interrupção voluntária da gravidez, vulgo aborto ou desmanche, é fracturante na nossa sociedade.
Os 5 777 676 eleitores que nem disseram sim nem não corresponderam a cerca de 70% do total! Isto quer dizer que dos restantes 30% que votaram o "não" venceu com pouco mais de metade dos votos expressos, portanto uns 16%. Assim 16% decidiram por todos. Se a vitória tivesse sido do "sim" continuaria a ser a mesma situação. Só meia dúzia de gatos pingados se deu ao trabalho de se apresentar às urnas.
A actual lei do aborto, de 1984, em teoria é boa. Permite-se o aborto em caso de violação da mulher e em caso desta ou do seu feto estar em perigo de vida. À primeira vista isto é suficiente, mas quando os abortos ilegais se fazem diga lá o que a lei disser por não contemplar outros casos também importantes (tais como as questões económicas ou a maturidade da futura mãe, por exemplo) verifica-se que a lei de 1984 não é assim tão boa. Esta lei permite que uma futura mãe pobre, ou apenas remediada, vá abortar em condições que a poderão colocar em risco de vida, ou em alternativa uma futura mãe com mais posses sempre pode ir até Badajoz comprar caramelos e fazer um aborto nas condições que uma clínica permite. A lei que deveria ser universal torna-se na prática discriminatória pois nem todas têm a possibilidade de resolver o seu problema de uma forma segura. A lei esquece também que quem aborta não o faz de ânimo leve, e mesmo que tudo corra bem hão-de ficar marcas para o resto da vida nas mentes dessas mulheres.
Na campanha do referendo ao aborto de 1998 esgrimiram-se opiniões, no fundo talvez todos tivessem a sua razão. Enquanto a campanha pelo "sim" lutava principalmente pelo direito de decisão, a campanha do "não" defendia o direito à vida. Esta criou a figura do Zezinho, representando todos aqueles fetos que um dia seriam os homens e mulheres do futuro. Na campanha, quanto a mim, faltaram os exemplos de outros países (tanto em relação ao não como ao sim) para poder fazer comparações. Aliás faltam muitas vezes esses exemplos em muitas ouras decisões de interesse nacional. Não quero dizer que se deve copiar tudo o que os outros fazem, mas pelo menos podemos ter uma ideia de como as coisas se processam.
Pela nossa lei, uma mulher que aborte em território nacional à revelia das condições da lei de 1984 é uma criminosa. E de vez em quando os jornais falam-nos dessas criminosas que por terem o azar de não poder ir a Espanha foram apanhadas pela lei deste lado da fronteira. Àquelas que o podem fazer a lei não as agarra. E o Zezinho morre em ambos os casos.
Há uns anos uma senhora madeirense estava grávida de seis gémeos, como resultado de um tratamento de fertilidade. Apesar dos avisos dos médicos que lhe aconselhavam a não dar à luz todos eles, esta senhora decidiu que todos eles haveriam de nascer. De facto escolher este ou aquele feto para nascer enquanto os restantes deveriam morrer seria uma decisão no mínimo cruel. Gerou-se toda uma campanha de solidariedade por uma sociedade que a viu como uma heroina. Recebeu seis camas, uma por cada um dos seus zezinhos que haveriam de nascer. E nasceram, mas infelizmente nenhum deles veio a sobreviver. Não imagino o estado de espírito desta senhora vendo todas as seis camas vazias. Prometeu voltar a tentar a sorte, mas desde então nunca mais se ouviu falar dela.
Obviamente que ninguém a chamou de criminosa devido à sua decisão, que não escolhendo qual dos seus fetos deveriam viver para que os outros sobrevivessem acabou por dar o seu contributo para a morte de todos. Saiu desta história como uma heroina e o Zezinho morreu de qualquer maneira. É simplesmente de uma ironia atroz.
Não chamo a essa senhora de criminosa, nem sequer por negligência. Não tenho esse direito, ninguém tem. Pelo menos teve o poder de decisão. Por outro lado não chamo uma mulher de criminosa por abortar fora dos parâmetros que a nossa lei o permite fazer. Também não tenho esse direito.
Para mim nem o Estado tem esse direito, quando os apoios dados às mães carenciadas estão longe de serem suficientes. O Zezinho deve nascer mas cabe a quem lhe vai dar vida decidir quando.
10 Comments:
At 3:32 da manhã, Anónimo said…
Well said !
At 10:32 da manhã, Filipe Gomes said…
De facto a questão não é simples e nunca pode ser discutida com alguma reserva mental ou de forma preconceituosa. Creio contudo que nunca um casal deveria abortar por não ter condições (sobretudo económicas) para proporcionar uma vida digna a um filho. Porque todos deveriam ter condições económicas para decidirem. E esse para mim, é um dos maiores falhanços do Estado (e do mundo em que vivemos).
obs. referi "casal deveria abortar" porque na minha opinião este não é problema exclusivo da mulheres, e se o é, a culpa reparte-se pelos homens que não o assumem também como um problema seu.
Como dizia uma amigo meu "o casal está gravido".
At 11:48 da manhã, mg said…
Pois é F. Gomes, mas quem vai a tribunal são as mulheres como sabe...
Obs.: o que estão a fazer duzentos e tal deputados sentados no parlamento? É só para terem regalias? Ou para legislar? Como é seu dever.
At 12:21 da tarde, Filipe Gomes said…
fiquei sem perceber se está ou não de acordo comigo. É óbvio que nenhuma mulher deveria ir a tribunal.
At 1:04 da tarde, mg said…
concordo consigo.
At 3:27 da tarde, carlos said…
Filipe: claro que um casal não deveria abortar por não ter condições, claro que nenhum casal o quer fazer. Mas faz. Porque muitos não têm condições - facto.
O estado não deveria intrometer-se no útero da mulher nem em mais nenhum sítio de uma relação. A religião e os preconceituosos que lidem com os seus problemas sem chatear ninguém.
At 11:04 da tarde, Anónimo said…
...o problema é quando dentro do utero de uma mulher já se encontra um ser vivo que não tem condições de se defender ou de mostrar o seu ponto de vista. Concordo com o aborto até ás 9 semanas em determinados casos e sempre com aconselhamento psicológico, mas nunca como método de contracepção! O problema é que a "Santa Igreja" repudia o preservativo e a pilula, o Estado não apoia como deve ser a Educação Sexual dos mais jovens. Bastava haver preservativos grátis nas escola que só isso já fazia com que a percentagem de adolescentes grávidas diminuisse.
At 1:56 da manhã, Papa Ratzi said…
Lobo Mau, a Educação Sexual, como disciplina, já existe desde 1984 8se não estou em erro). No entanto, a primeira vez que ouvi falar de sexualidade humana na escola foi na disciplina de Saúde no meu 9º ano. Nessa altura eu e outros até já poderiamos ser pais solteiros. A disciplina já existia, no papel...
Actualmente é dada de uma forma interdisciplinar, cada disciplina dá o seu contributo.
At 5:26 da manhã, Anónimo said…
No meu tempo de escola, camisas de vénus, especialmente nesta altura, davam um jeitasso. Quando faltassem os sacos de plástico e os balões não faltaria alternativa para molhar as miúdas. E uma coisa vos garanto, independente da idade ou da líbido molhadas ficavam.
At 2:07 da tarde, Anónimo said…
A questão do aborto, e a forma como foi referendada aqui há uns anos, mostram alguns dos piores vícios da nossa sociedade. Por um lado, ficou mais que patente o desinteresse dos portugueses relativamente às decisões políticas (afinal, há sempre um médico amigo, uma senhora curiosa, ou uma estrada para Badajoz). Por outro lado, em meu ver mais gravoso, notou-se a fraca laicidade do nosso suposto Estado Laico. A Igreja faz campanha eleitoral pelo não de uma forma quase medieval ("Votem Simm à despenalização e vão para o Inferno")!E lá vão as temerosas beatas, que já nenhuma vida vão gerar, impor às suas filhas e netas uma regra que já não terão de cumprir. E, ironia das ironias: uma Igreja que no seu cerne não gera vida (por proibir os relacionamentos carnais dos seus "pastores") vir a terreiro defender o direito à vida. Será que eles não se lembram que a mentira é um pecado mortal?
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